No último dia do Festival Internacional Sesc de Circo 2017, em São Paulo, tive a sorte de assistir Maku Fanchulini e Chacovachi pisando a mesma cena, ao mesmo tempo - com o espetáculo "Fritos e refritos", no teatro do Sesc Pompéia. Digo sorte pois em um momento me olhei naquela situação, comemorando aquele encontro, e dediquei à várias amigas e amigos que gostaria que estivessem ali comigo. Também torci para que aquele momento durasse mais. Muitos dizem que isso é uma das definições de felicidade. Quando viu, já foi.


Assisti Chacovachi pela primeira vez em 2009 e me impressionei com as possibilidades que ele traz pelo seu trabalho: uma mala no chão meio largada e muita bagagem dentro dela. Chaco tem frases de efeito e a construção calma de quem sabe contar a mesma piada e fazer ter graça quantas vezes for necessário. Como ele mesmo diz: "Faço isso há trinta anos. Como toda pessoa que tem a mesma profissão há trinta anos... Eu odeio o que faço!". 


Palhaço, humano - suas questões transbordam no palco para serem pisoteadas e exaltadas ao mesmo tempo. Uma das grandes lições que guardo dele é a que fala que cabe a nós, palhaças e palhaços, dizer verdades que parecem mentiras e mentiras que parecem verdades. Levo isso como reflexão: não desejo construir novas verdades absolutas - desejo questioná-las, inverte-las. (Será?!) 


Claro que escrevo aqui como um admirador, como alguém que vem entendendo (e tentando cada vez mais entender) sua obra. E entre tantas coisas que já conversamos, Chaco me disse certa vez:  "Você precisa assistir a Maku, Rafa. Ela também não fala muito em cena, assim como você". 


Não deu outra. Mestre é mestre. Precisava mesmo assistir Maku. E para dizer mais, observar esse hibridismo de Maku e Chaco. Palhaça e palhaço de rua, junt@s. "Fritos e refritos" veio como a pólvora de Maku. Se tem um adjetivo que ela incita é: EXPLOSIVA. (Não apenas por uma das cenas em que usa aquelas velinhas de aniversário que demoram demais a acender e se parecem com um pavio de bomba. E nem por outra em que usa bomba mesmo! Mesmo sem os artifícios, o adjetivo caberia em todas as formas.) 


Quando os números com velas e bombas terminavam, ficava aquele cheiro de pólvora no ar, sabe? Cacei a saída de emergência, bom precaver. Caçar a saída é se movimentar! 


Palhaça de rua, Maku segura rodas imensas em festivais e sua principal via de comunicação não é como a de Chaco, que tem sua primeira via na fala. Maku é mais gestual, física. Por isso, junt@s, se acrescentam em cena. Uma soma de artistas que sabem como é segurar um espetáculo solo. Chaco era a abertura das minhas orelhas, Maku dos meus olhos e com um descanso para o discurso. 


Respira, assopra e explode como pólvora (ou como bexiga)


No desenvolvimento narrativo de Maku, ela apresenta tentativas grandiosas, mas frustradas. Sua figura acaba por rechear essas cenas e convida o público para torcer por essas conquistas. Domesticar um cachorro à pilha que dá cambalhotas ou equilibrar um ovo na testa e depois mostrar o truque. É a construção da figura desajustada, explicitada no palco. Maku constrói isso e faz com que gostemos dela pela sua força de vontade, de continuar tentando. Mais uma vez. E mais uma. Não foi. Mais uma...Viva Maku! Conseguiu!


A palhaça arremata mostrando aonde todas as suas tentativas conseguiram levá-la: numa parada de cabeça com quatro argolas distribuídas nos dois braços e pernas, um equilíbrio de boca e POW! Outra velinha aparece para relembrarmos que uma das lições da palhaçaria, como falou Nani Colombaioni é a seguinte: "Se você vai pular um muro ou montar um cavalo, deve fazer o público acreditar que é muito fácil. Mas se quiser pular sobre um chapéu, deve fazer o público acreditar que é muito difícil. A lógica é sempre ao contrário da vida, mas o público deve acreditar sempre que o problema é de verdade." (LIBAR, 2008, p.135)* 


Voltando para Chaco, ele tem um número que também trabalha com nossa possibilidade de acreditar ou não em determinada situação. Ele começa com uma bexiga e uma agulha enorme na mão e pergunta: "Vocês acreditam que eu consigo passar essa agulha por essa bexiga?" o público responde: "NÃOOOO!". É o início do caminho de convencimento do número em que ele veste uma túnica que diz basicamente que nossa moeda vale quatro vezes menos do que a moeda européia. E vai abusando dos argumentos e diz: "Amigas e amigos, estou falando de sonhos, do cuidado com os pés...". Até que entra uma música e você se percebe no meio de todas aquelas pessoas com uma nova opinião. 


Então, ele pergunta novamente: "Eu posso atravessar esse balão com uma agulha?" E o público responde: "SIIIIIIIIM!" Para a música, Chaco pede para cerrarmos os pulsos "arriba" e gritar. Todo o público faz. E POW! Ele estoura a bexiga e junto com o barulho ressoa  voz do palhaço argentino: "NOOOOOO!" 


E continua: "Espero que tenham aprendido algo, não é porque estou vestindo uma roupa dessa, estou em cima de um banquinho e tenho um microfone que quer dizer necessariamente que eu esteja falando a verdade." Mudamos novamente a opinião, mais uma vez em tão pouco tempo. Ele pergunta de novo para o público se é possível que a agulha atravesse a bexiga. Dessa vez, o público responde que "NÃO!". E Chacovachi atravessa a bexiga com a agulha sem estourá-la. 


Gosto de citar esses dois exemplos pois mora aí uma das funções do humor. O questionamento das nossas superverdades. Essa mutação possível. Essa mudança de perspectiva. Esse olhar de outros ângulos para enxergar possibilidades dentro de problemas e subversões dentro do sistema. É um lugar que me deixa feliz  em viver dessa arte. 


Por fim, meu agradecimento imenso e fraterno para Maku e Chaco e meu muito obrigado por me fazerem entender um pouco mais o que é ser uma palhaça e um palhaço latino-americanos. 



Rafael de Barros, un payaso callejero latino americano




*LIBAR, Marcio. A Nobre Arte do Palhaço. Rio de Janeiro: Marcio Libar, Adriana Schneider Alcure, 2008.